terça-feira, 31 de maio de 2011

Depoimento de Eliana Boralli - Mãe de Natália - Autista de 20 Anos - Revista Marie Claire ( Daniela Bolzan)

Natália - 20 Anos
Reportagem Revista Marie Claire
Como toda mãe, Eliana Boralli sonhava com um futuro brilhante para Natália. Mas, com pouco menos de 2 anos, a menina começou a perder o fôlego, voltou a usar fraldas e emudeceu. A partir daí, mãe e filha trilharam um longo e doloroso percurso até chegar ao diagnóstico: autismo. À procura de respostas para uma doença que, ainda hoje, desperta tantas dúvidas, Eliana acabou transformando o drama pessoal em bandeira de vida. Foi estudar e criou uma associação onde Natália e outras crianças especiais têm chances de encontrar seus próprios caminhos de conexão com o mundo.


Carinhosa, Natália faz questão do contato com a mãe, mas também gosta de ficar em seu quarto, ouvindo música e vendo revistas
Viagem de avião
Você pode me trazer uma Coca-cola com gelo e limão? Olho para minha filha com ar de reprovação. Natália tem tendência a engordar e sabe que não deve exagerar nos refrigerantes. Na mesma hora, me pego pensando que a aeromoça que está trazendo o copo nem de longe percebe que ela é autista. Estamos no avião, a caminho de Goiânia, onde vou participar de um seminário sobre ensino especial. Estudei e aprendi muito sobre a doença de Natália porque, há 20 anos, quando os primeiros sinais do problema apareceram, ninguém sabia explicar nada. Acabei me tornando uma profissional, mas, até hoje, o que me move todos os dias é o amor pela minha filha.'

Na maternidade
Ainda guardo os dois exames. No primeiro, fui diagnosticada como estéril, depois de operar ovários policísticos. No segundo, dois meses depois, soube que estava grávida. Eu tinha 26 anos. Natália nasceu nove meses depois de uma gravidez normal, numa cesária. Um bebê lindo e aparentemente saudável. Quando a enfermeira a trouxe para o quarto pela primeira vez, fiz o que, acho, toda mãe faz. Abri toda a roupinha, contei os dedinhos, queria ver se minha filha era perfeita. Não havia nenhum motivo para isso, mas, naquela hora, senti uma angústia inexplicável e comecei a chorar. Como eu não conseguia me controlar, minha mãe chamou o médico, o pediatra, enfermeiras... Acharam que era depressão pós-parto. Tentei dizer que não era isso, eu estava feliz, tinha desejado muito aquela filha. Mas não sabia explicar aquele nó na garganta. Apesar de tudo parecer absolutamente em ordem, alguma coisa dentro de mim sabia que Natália tinha um problema.'

Primeiros sinais
Os meses foram passando e o desenvolvimento dela era normal. Com menos de um ano, Natália já dizia 'mamã', brincava no jardim, andava e pedia o avô 'catatau', meu pai, a quem continua muito ligada. Mas, a partir dos 11 meses, ela começou a perder habilidades. Vieram as crises de falta de ar. Isso acontecia sempre que algo a deixava nervosa. Daí ela não conseguia se comunicar e ia engasgando, engasgando, perdia o fôlego a ponto de ficar roxa. Quando aquilo passava, Natália caía molinha, pálida. Pouco tempo depois, ela ficou estrábica, os olhinhos entraram para dentro. Com 1 ano e meio, ela, que já estava deixando as fraldas, perdeu o controle do xixi e do cocô. Foi aí que passei a prestar atenção naquela regressão, de tanto os meus pais cutucarem. A gente não quer ver, dói muito.

Hoje eu sei que esses sintomas acontecem em um terço dos casos. A criança tem um desenvolvimento aparentemente normal e, de repente, começa uma regressão gravíssima. Na maioria dos casos, o problema fica evidente logo que nascem... Quando a levei aos primeiros médicos e ela passou a tomar o remédio para as crises de falta de fôlego, tudo piorou. A medicação a deixava apática, letárgica. Com 1 ano e oito meses, minha filha, que antes parecia uma menina tão igual às outras, passava o dia prostrada, babando, não andava nem falava mais'.

De volta ao útero
Não sei quanto tempo passei sem ir ao cabeleireiro, sem fazer as unhas, para dizer a verdade, nem banho eu tomava direito. Entrei em depressão profunda. Procurei neurologistas, psicólogos, medalhões de várias áreas e, na época, ninguém chegava a um diagnóstico. Medicavam para isso e para aquilo, mas Natália ficava cada vez mais fora do mundo. De uma psicóloga, cheguei a ouvir que eu tinha exagerado na estimulação com minha filha e, por isso, ela teria se deprimido...



Natália está entre a minoria de crianças que parece saudável quando nasce, mas regride e mostra os primeiros sinais de autismo algum tempo depois

Eu não tinha ânimo para fazer nada. Pilhas de pratos se acumulavam na pia, eu só lavava as fraldas dela. Um dia, quando eu estava na cozinha com a Natália do lado, no colchonete que eu colocava sempre ali, percebi que ela prestava muita atenção na água da torneira. Aquilo era um sinalzinho de vida, o único que ela dava depois de tanto tempo. Daí pensei: 'Ela gosta de água'. Comprei uma bacia bem grande e me colocava com ela dentro dessa bacia, debaixo do chuveiro. Ficávamos assim um tempão, nuas e abraçadas, de cócoras... Eu dizia baixinho no ouvido dela: 'Mamãe te ama, você vai nascer de novo pra vida' e abraçava forte. Tempos depois, um professor meu disse que, intuitivamente, eu tinha feito uma terapia de reversão com ela. Foi como se eu tivesse me transformado em útero de novo... Ele disse que isso ajudou mesmo a trazer a Natália um pouco de volta.'

Aniversário feliz
Três médicos receitaram o mesmo anticonvulsivo que deixava Natália apática. Foi assim até o dia em que um quarto neurologista decidiu tirar aquele remédio. E então ela começou a reagir um pouco. Não existe um medicamento específico para o autismo, até porque são vários tipos e graus do problema. A gente usa os mesmos remédios que todo mundo toma para a agressividade, a hiperatividade, compulsões, essas coisas. Mas o cérebro de um autista tem uma química diferente e é preciso ir experimentando até encontrar o que funciona melhor em cada caso.

Com a melhora de Natália, fiquei tão animada que decidi fazer uma festa para comemorar seus três aninhos. Eu e o Wagner a levamos a uma dessas lojas que vendem enfeites e combinamos comprar a primeira coisa que chamasse a atenção dela. Foi a boneca Moranguinho. Desmontei a casa, enfeitei tudo de Moranguinho. No dia, sentei com ela no chão, no meio da sala, e expliquei que tudo aquilo era só para ela. Na hora da festa, ela chorou, deu um certo trabalho. Mas, no fim do dia, Natália conseguiu olhar nos meus olhos, coisa que não acontecia há muito tempo. E disse 'mamã'. Fui eu quem ganhei esse presentão de aniversário.'


As aulas na Associação são a rotina da menina e de outras 33 crianças
Crise a três
O autismo é um ácido, vai corroendo o relacionamento. Fiquei casada 21 anos com o Wagner, o pai da Natália. Ele me ajudou a construir a Associação [Associação dos Amigos da Criança Autista] e foi companheiro durante todo esse tempo. Mas, em certo momento da nossa história, o relacionamento de casal acabou. Nós nos amávamos verdadeiramente, só que o amor não resistiu ao choque causado pelo autismo de Natália. Eu insistia em procurar ajuda. Ele negava, não queria admitir que nossa filha não era normal e, nas discussões, muitas vezes me acusava, dizendo que eu era responsável pela 'depressão' dela. Era difícil ouvir aquelas coisas. Hoje entendo. Vejo que era puro desespero. Jogar a culpa no outro alivia a dor e ajuda a esconder o que não queremos ver.

Natália dormiu conosco, na mesma cama, até os 12 anos. É claro que isso interfere, separa. Éramos jovens, casados há pouco tempo, mas já não existia espaço nem energia para o sexo. Foi uma luta até que ela começasse a dormir sozinha. Ou quase. Como a maioria dos autistas, natália precisa sentir um corpo encostado nela o tempo todo e, até hoje, com 20 anos, dorme na minha antiga cama, que é king-size, com dois enormes bichos de pelúcia, o leão e o tigre, um de cada lado.'

No espelho
Até os três anos e meio, Natália passava o tempo todo só comigo. Não havia escola para minha filha. Mas, depois da festinha de aniversário, quando ela ensaiou aquela pequena reação, prometi para mim mesma que faria tudo para ajudá-la a fazer progressos. A primeira providência foi operar os olhinhos dela. Procurei um bambambã e a cirurgia foi um sucesso. Felizmente o problema era muscular, não neurológico. O dia em que tiramos o tampão e ela se viu no espelho, mesmo com os olhos ainda muito vermelhos, ela entendeu que não era mais estrábica e sorriu.'

Mania de mexer
Natália adora massa de modelar e é capaz de passar horas manuseando um pincel de barbear. Essa compulsão ligada ao tato é comum entre os autistas. Nunca interferi porque isso a acalma. Quando era pequenina, de tanto brincar com grãos de todos os tipos, arroz, feijão, ervilhas, sagu, ela acabou desenvolvendo o movimento de pinça, que é muito sofisticado para um autista.


O diagnóstico
Depois de tantos médicos famosos, foi uma psicóloga do meu convênio, chamada Ana Maria Sá Pinto Caruso, quem finalmente me disse: 'Sua filha é autista'. Disse mais. 'Você não tem culpa nenhuma por isso'. Na época, ela me deu um livro para ler, do médico Christian Gauderer, que explicava tudo. Natália estava com três anos e meio. Quando tomei consciência de que a culpa não era minha, que nada do que eu tivesse feito poderia ter provocado aquilo, recuperei a vontade de viver. Por ela e também por mim.
Comecei a estudar. Eu era uma assistente social, mas fui fazer pós-graduação em psicomotricidade, porque incluía a pedagogia, a psicologia e a neurologia. Isso me ajudou muito. Entre muitas coisas, consegui entender que Natália não poderia escrever por causa de um tremor involuntário nas extremidades. Ela aprendeu a ler, mas só escreve com letras prontas, que ela fixa em uma lousa de velcro.'


Natália lê a palavra em uma tela e escreve com as letras de um
teclado adaptado
Escola especial
A idéia da Associação surgiu quando Natália ainda era pequena. Ela chegou a freqüentar uma escola normal aos 5 anos. Todos eram carinhosos, mas, claro, ela não conseguia acompanhar. Hoje as coisas estão mudando e a inclusão orientada começa a ser uma realidade em vários lugares do Brasil. Para autistas como Natália, é difícil aceitar os limites de um ambiente. Se ela não quiser ficar dentro de uma sala de aula e alguém forçar, é bem possível que ela entre em crise e se auto-agrida.

Eu me trincava por dentro quando via as crianças da vizinhança indo para a escola com os amiguinhos... A única associação especializada que existia na época, em São Paulo, não tinha vaga. Mas eu não podia deixar minha filha crescer daquele jeito, presa dentro de casa, sem chance nenhuma.
Ela estava com 5 anos quando eu e Wagner decidimos começar com a AUMA, no quintal de casa. Publiquei um anúncio no jornal da região comunicando que a Associação tinha sido fundada. Começou a juntar gente. Pouco tempo depois, o Centro Espírita Paula de Souza nos cedeu uma sala. Ficamos lá durante uns dois anos. Não imaginei a proporção que as coisas tomariam... As pessoas começaram a me procurar e, de lá para cá, fomos crescendo, com a ajuda de muita gente. Vivemos de doações, rifas, bazares, de tudo um pouco. Hoje tenho 33 crianças, dos pequeninos aos mais velhos, como Natália. Além de mim, há 14 pessoas trabalhando lá, mais os voluntários. Sonho com a construção de um centro especializado. Quero ter certeza de que, quando eu não estiver mais aqui, a Natália vai poder viver com conforto e dignidade nesse centro.'

Para Eliana, a maior conquista de quem tem um filho especial é olhar para a vida
de outro jeito, valorizando as pequenas felicidades

Amor delicado
O autismo da Natália é brando. Ela tem deficiência mental e, quando perde o controle, pode se machucar. Mas minha filha aprendeu a ler e conseguiu muita autonomia. Ela evoluiu intelectualmente, num tempo bem maior do que uma criança normal, é claro. Voltou a falar, apesar de os neurologistas me desanimarem quando ela era pequena. Agora está aprendendo a fazer cálculos de adição e subtração. A evolução é lenta e, em algum momento, ela vai chegar ao seu limite. Ainda não chegou, então não parei de estimulá-la. Até hoje, mando ela se ajeitar quando senta, lembro que é preciso usar o guardanapo, chamo a atenção para que ela não empurre a comida com o dedo em vez de usar a faca.

Natália tem uma memória impressionante. Mas ela, assim como a grande maioria dos autistas, não é 'brilhante' como o personagem de Dustin Hoffman no filme 'Rain Man'. Na verdade, esse tipo de autismo é raro, quase todos têm retardo mental, em maior ou menor grau. Só que isso não tem nada a ver com sentimentos. Diferente do que muita gente pensa, os autistas amam, pensam e sentem. Os casos mais graves têm uma dificuldade de conexão, mas isso não quer dizer que eles não sintam também. E são todos muito carinhosos, mesmo os mais comprometidos.

Sempre tratei minha filha como uma menina normal. Nunca olhei para Natália com dó. Ela tem uma diferença, é verdade. Mas quem não tem?

Acho que uma das conquistas de quem tem um filho especial é aprender a ver tudo de outro jeito. E a reconstruir os planos de vida. Aqueles projetos, de que a filha vai ser uma estudante brilhante, ou uma modelo fotográfica, sei lá, tudo muda. Hoje fico feliz quando a Natália está ouvindo música, que ela adora, e vendo revistas. Não pude levar minha filha nas aulas de balé e dificilmente vou vê-la entrando numa igreja, vestida de noiva. Não pude viver tantas coisas que toda mãe sonha. Durante muito tempo me perguntei 'por que eu?'. Até encontrar o meu grupo de iguais. Quando conheci outras mães que viviam a mesma realidade, minha revolta se foi. Encarei meu trabalho, com a Natália e com as outras crianças, como uma missão. Acho que, de alguma forma, soube disso no dia em que ela nasceu.'

 Fonte: Marie Claire
Abraços
Daniela Bolzan

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